Alguns sentem a preocupação de que dizer que a Bíblia precisa ser interpretada
implica que ela seja imperfeita.
Outra
preocupação inteiramente legítima é o medo de que dizer que a Bíblia precisa
ser interpretada é dar a entender que ela é insuficiente ou imperfeita. Segundo
este raciocínio, se dissermos que a Bíblia precisa ser interpretada estamos
dizendo com isso que ela é de uma certa forma falha, por não poder se comunicar
diretamente, sem ajuda, a qualquer pessoa em qualquer época.
Conseqüentemente
(segue-se o raciocínio), se a Bíblia é de qualquer forma falha ou insuficiente,
então ela não poderia ser a Palavra perfeita e inspirada por Deus. Também ela
não poderia servir como guia de confiança sobre nossas vidas espirituais ou
autoridade absoluto para o Cristão. O problema com esta preocupação é que ela
não compreende aonde existe a falha, a possibilidade de erro e a insuficiência.
Vale a pena
a seguinte observação:
“É verdade que, ao nível mais fundamental os Cristãos gozam de um acesso
direto a Deus e que seu Espírito se comunica diretamente com o nosso espírito
por meio das Escrituras. Por outro lado, não devemos permitir que esta verdade
preciosa se degenera num senso de perfeita compreensão particular. Para
começar, nossos limites e pecaminosidade interferem no processo de compreensão
perfeita. E, mais uma vez, estamos separados por uma grande distância de tempo
e cultura dos escritos que compõem a Bíblia.”
Dizer que a
Bíblia precisa ser interpretada não implica que ela seja falha ou imperfeita.
Nem tampouco significa que ela perde sua autoridade ou infalibilidade.
Precisamos reconhecer que o que é falha não é a Bíblia, mas a nossa
compreensão. O que carece de perfeição não é a Palavra de Deus, mas as nossas
mentes. O que precisa ser preparada e transformada não é a mensagem divina, mas
os nossos meios de raciocinar e pensar.
Alguns
pensam que o Espírito Santo naturalmente nos protege de enganos e equívocos em
relação à interpretação da Palavra. Pensam várias pessoas que, como Cristo
prometeu que o Espírito ia guiar seus primeiros discípulos à toda verdade (João
16:13), que Ele continua a guiar hoje os seguidores de Jesus quando lêem as
Escrituras de modo que não sejam enganados. Vale a pena uma outra observação:
“Queremos saber o que a Bíblia significa para nós - e isso é certo. Não
podemos, no entanto, fazê-la significar qualquer coisa que nos agrada, e depois
dar ao Espírito Santo o "crédito" por ela. O Espírito Santo não pode
ser conclamado para contradizer a Si mesmo, e Ele é Aquele que inspirou a
intenção original.”
O Espírito
Santo nos ajuda e nos guia no entendimento da Palavra de Deus (1 Cor 2:10-16; 1
João 20:27). Mas o Espírito tem que fazer isso numa luta constante com as
nossas mentes humanas que são falhas. O mesmo Espírito tem como propósito
ajudar o homem a resistir sua tendência pecaminosa (Rom 8:13; Gal 5:17). Mas, o
Espírito tem que fazer isso contra a fraqueza natural da nossa vontade humana.
Da mesma
forma que o Espírito Santo luta contra a vontade humana e fraca para nos livrar
do pecado, o Espírito luta contra nossas mentes humanas para nos dar
discernimento na Palavra de Deus. Apesar de ter a ajuda do Espírito que é
perfeito, nosso entendimento das Escrituras não é perfeito. Portanto, apesar de
sermos guiados pelo Espírito Santo, nossas interpretações da Bíblia estão
sempre sujeitas ao erro.
É possível
que parte do problema esteja com a nossa definição do processo de
interpretação. Talvez seria mais correto dizer que a interpretação da Bíblia é:
“aquele processo pelo qual a mente, o raciocínio, a lógica e todos os meios de
comunicação do homem são treinados e preparados para receber, compreender e daí
comunicar a Palavra de Deus.”
Pensar que
todos podem chegar à Bíblia pela primeira vez, abri-la e compreender com perfeita
lucidez tudo que ela está dizendo é um pensamento sedutor, mas enganoso. Isto é
um pensamento bastante comum, mas, isto é um pensamento cheio de presunção por
nossa parte. A Bíblia é um vaso perfeito para a comunicação da vontade de Deus.
Mas a minha mente é um vaso imperfeito para receber aquela comunicação
perfeita. A idéia de que qualquer pessoa pode abrir a Bíblia e logo entender,
sem ajuda, tudo que ela ensina não é uma idéia ensinada nem apoiada pela
Palavra de Deus.
De fato a
própria Bíblia ensina o contrário. Ela ensina claramente que sempre houve e
sempre haverá uma necessidade para pessoas especialmente dotadas por Deus e
treinadas e equipadas por Ele para interpretar e ensinar a Bíblia.
·
Jesus,
no contexto de interpretar uma das sua próprias parábolas exortou seus
discípulos a serem como o bom “escriba” - “Por isso, todo escriba versado no reino dos céus é
semelhante a um pai de família que tira do seu depósito coisas novas e coisas
velhas.” - Mateus 13:52
·
Jesus
disse: “...eis que vos envio profetas, sábios e escribas...” - Mateus
23:34
A palavra
usada por Jesus nos dois versículos citados acima é a mesma usada para os
famosos intérpretes da lei Judaica do primeiro século, os “escribas” (gr. grammateus).
Na época de Jesus o grammateus era um
intérprete oficial. Com poucas exceções, “grammateus no NT sempre tem seu
significado judaico de ‘erudito na Tora’, ‘rabino’, ‘teólogo ordenado’.
Freqüentemente
estes escribas foram associados aos fariseus (Mat. 5:20; 12:38; 15:1). Nos dias
de Jesus não tinham boa fama. Mesmo assim, Jesus afirmou que o ministério da
interpretação da Palavra continuaria a existir. Em referencias como Mateus
13:52 e 23:34 Jesus não está incentivando seus seguidores a seguirem a
hipocrisia dos líderes religiosos da sua época. Mas, segundo Jesus, haveria
escribas do Reino, homens dotados com a missão de interpretar as Escrituras, e
Jesus mesmo prometeu enviar escribas para seus seguidores.
Vemos que
Jesus viu a prática da interpretação como legítima e necessária. Outras passagens
nos mostram que os primeiros seguidores de Jesus tinham a consciência de que
haveria a necessidade de membros da Igreja especialmente treinados para
interpretar a Bíblia.
·
“Havia
na igreja de Antioquia profetas e mestres...” - Atos 13:1
·
Jesus
preparou especialmente para a edificação da sua igreja homens com o dom de “mestre”
(1 Cor 12:28-9; Efé 4:11)
·
Paulo
era “pregador, apóstolo e mestre” (1 Tim 2:7; 2 Tim 1:11).
Evidentemente a função de cada um destes dons era diferente, como também parece
nas listas de 1 Cor 12:28-9 e Efé 4:11.
Se era
necessário apenas anunciar o evangelho e não interpretá-la para o povo, Deus
poderia ter mandado apenas pregadores ou apóstolos. Mas, ele mandou também
evangelistas e mestres, homens com o dom e a responsabilidade de interpretar a
Palavra e aplicá-la corretamente (veja 2 Tim 2:24 e 4:2-4). O pastor também tem
que ser um homem preparado e equipado para ensinar (1 Tim 3:2; Tito 1:9). Vemos
aqui por meio das providencias de Deus que Ele mesmo previu a necessidade de alguns
irmãos especialmente preparados para interpretar e ensinar as Sagradas
Escrituras.
Vendo
tantos exemplos bíblicos fica evidente que Deus não deu a entender que a Bíblia
é uma coisa simples e fácil de entender. A mensagem do Evangelho é simples. O
amor de Deus por nós não é complicado. Vários aspectos da Palavra de Deus são
fáceis de compreender. Mas, vários outros aspectos são bastante sutis e
difíceis para nós compreender, precisando passar pelo processo de
interpretação. É justamente por causa desta necessidade que Deus preparou
certos homens com o dom de estudar e ensinar sua palavra.
Portanto, é
enganosa a impressão que alguns tem de que, quando abrem e lêem a Bíblia, as
conclusões a que cheguem, as deduções e idéias que vêem às suas mentes, são a
pura verdade de Deus, sem qualquer influência particular. Todos nós somos o
resultado, a soma, de várias influencias familiares, culturais, sociais e
espirituais. Todas estas influencias e idéias em certos momentos podem servir
para esclarecer algo na Palavra de Deus, e em outros momentos podem obscurecer
aquela Verdade Divina.
É por isso
que precisamos ser treinados e preparados para receber aquela Mensagem.
Precisamos ser treinados para poder distinguir entre aquilo que partiu do texto
original e aquilo que partiu de uma influência da nossa cultura, ou criação
particular ou simplesmente da nossa imaginação. Também precisamos ser treinados
e preparados para comunicar aquela mesma Mensagem de forma compreensível e
clara ao povo de Deus. Tudo isso faz parte do processo que chamamos de
“interpretação”. Lembramos que não é a Bíblia que é imperfeita, e sim, a nossa
compreensão dela. Portanto é perfeitamente natural que nós precisamos estudar e
nos esforçar para ter condições de interpretar ela de forma madura e
responsável. O nosso site de Hermeneutica.com.br é dedicado a ajudar neste
processo.